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O grande diferencial de “After Life” não é apenas o seu conceito inovador, mas a opção do cineasta Hirokazu Kore-Eda de não o mastigar para o espectador. O filme se passa numa espécie de limbo entre o céu e a terra. Os mortos passam por lá e têm alguns dias para selecionar a memória mais especial de suas existências, que será reproduzida em estúdio e os acompanhará na próxima vida. Eles não se lembrarão de nada além dessa bela e intocável recordação. A proposta é tentadora, entretanto, também desperta uma certa tristeza: após décadas de esforços e experiências, praticamente tudo se apagará? Vale a pena viver na perfeição absoluta? Fomos feitos para esse tipo de “artificialidade”?

Há tantos aspectos a serem elogiados em “After Life”, que eu, sinceramente, nem sei por onde começar. Os planos estáticos, os jump cuts, a câmera na mão, os cortes secos, o respeito por sutilezas, assim como os respiros e as risadas conferem uma abordagem quase documental à obra – principalmente às cenas de entrevista. Alguns só têm lembranças ruins; outros questionam a possibilidade de escolher mais de uma. Kore-Eda, através dos contrastes humanos, forma um painel fascinante. Enquanto estamos na Terra, falamos sobre a possibilidade de realizar coisas extraordinárias e de se aventurar, todavia, quando chegamos ao fim, nos recordamos justamente das coisas menos “extraordinárias” e mais simples. Um presente do irmão, uma dança, o esperado reencontro com o marido, o som de um sino e a brisa do vento. Vivemos pela estabilidade e pelo conforto, no entanto, são as sensações que interessam.

Aqueles que atuam no limbo são enfáticos em relação à escolha, pois estão presos ali justamente por não terem se lembrado de nada feliz ou especial. Em determinado momento, Shiori avisa que está lendo a Enciclopédia Mundial sem pressa, afinal, tem tempo de sobra. Os trabalhos de fotografia e direção de arte fazem do limbo um ambiente, simultaneamente, similar e diferente da Terra. Reconhecemos a arquitetura simples, o jardim, os pequenos vasos de flores e a biblioteca; por outro lado, a presença de sombras, os tons frios, a escadaria cinza, o silêncio constante e a escuridão remetem a uma melancolia difícil de ser batida. Os espaços vazios conversam com o vazio dos personagens, já acostumados com a solidão de um lugar que, no fundo, não representa nada, é somente uma ponte. O ápice de seus dias é observar a bela e distante lua.

Em sua narrativa, Kore-Eda pontua os dias da semana, reforçando a natureza cíclica do limbo, que recebe, a cada segunda-feira, dezenas de mortos dispostos a conhecerem o paraíso. As memórias se adequam às nossas próprias imagens e idealizações, ou seja, o que guardamos é uma versão melhorada daquilo que já era incrível. Takashi vê o vídeo do casamento do homem por quem fica responsável e admite uma certa inveja. Watanabe não guarda nenhuma recordação com extremo carinho e é obrigado a rever sua vida em diferentes fitas. Kyoko, sua esposa, tinha sido noiva de Takashi, que morreu durante a Segunda Guerra Mundial. Ela nunca deixou de visitar seu túmulo e recitava seu nome com enorme carinho, o que magoava e entristecia Watanabe.

Shiori, que esconde seus sentimentos por Takashi, o ajuda a encontrar o filme de Kyoko. Era simples e bonito: os dois sentados num banco, conversando. Ele, então, percebe que fez parte da felicidade de alguém e se emociona. Takashi tinha uma chance, havia se lembrado de algo importante e poderia chegar ao paraíso. Shiori, em contrapartida, questiona se fez a decisão correta, já que, a partir de agora, nem seu amor platônico estaria no limbo.

Por último, não podemos esquecer da bela homenagem de Kore-Eda ao fazer cinematográfico. Temos acesso ao estúdio, às discussões acerca da escolha de cores, de efeitos e de objetos capazes de simular a presença de vento e das nuvens. O apogeu da existência desses seres humanos é eternizado na grande tela. Dessa forma, o cineasta japonês afirma que o cinema é a “arte das artes”, aquela que contempla o passado e o futuro; o possível e o impossível; o amor, o mundano e a filosofia.

Os atores que interpretam os personagens presos ao limbo combinam perfeitamente aceitação e passividade, ressaltando a imersão absoluta àquele lugar.

Contemplativo, original e sensível, “After Life” é um dos grandes marcos na carreira de Hirokazu Kore-Eda.

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