Robert Haynes foge da prisão, mata um policial, pega uma criança como refém, provoca uma perseguição intensa e rouba algumas pessoas no caminho. Por mais que essa descrição nos leve a crer no contrário, não estou falando de um criminoso impiedoso e sanguinolento. Ele não nutre simpatia alguma por Terry Pugh, seu parceiro, não à toa, o executa num momento oportuno. O propósito de sua fuga foge de obviedades e a situação que, a princípio, soa tensa e desesperadora, ganha, aos poucos, contornos lindíssimos. Haynes foi preso ainda jovem por roubar um carro. Red, chefe da polícia e encarregado pela missão, naquele período, acreditou que enviá-lo à prisão seria melhor do que mantê-lo perto de seu pai abusivo. Acontece que foi justamente o encarceramento que amaldiçoou o protagonista e transformou sua vida numa espiral de delitos.
Haynes quer resgatar sua infância perdida. Embora não conheça o Alasca, ele não tem dúvidas em relação ao seu destino, afinal, foi de lá que seu pai lhe enviou um cartão-postal, seu bem mais valioso. O protagonista guarda uma ingênua esperança de reencontrá-lo e, quem sabe, de ser o garoto que nunca foi. Nesse sentido, o roteiro não poderia ser mais certeiro ao colocar o refém de oito anos de idade ao seu lado. Phillip nunca teve uma figura paterna em casa e sua mãe, que é Testemunha de Jeová, apesar de atenciosa, impõe uma série de limitações ao seu cotidiano.
-Você vai atirar em mim?
-Não! Claro que não! Você e eu somos amigos.
Haynes se encanta pela criança e assume, ao mesmo tempo, as funções de amigo e pai que ambos nunca tiveram. Ele lembra da infância, dos raros momentos divertidos e faz o possível para que Phillip se sinta confortável e abraçado. As perguntas que faz ao garoto, são as que faria à sua versão infantil. Essa é a chance de se reconciliar com sua humanidade e de, finalmente, ser quem sempre quis, cuidando daquele que mais precisa de afeto. Em meio à perseguição e aos confrontos, Haynes tenta criar um mundo perfeito, onde o Alasca é uma oportunidade e o perigo se torna lúdico. Phillip não está acostumado a prazeres comuns à infância, como, por exemplo, festas de aniversário, Halloween e parques de diversão. O protagonista o coloca no teto do carro, simulando uma montanha russa e, quando assalta a casa de uma senhora, simula o famoso “doces ou travessuras”. A fantasia do Gasparzinho é o símbolo de uma relação movida por interações genuínas e divertidas. Em determinado momento, Haynes é pego por Phillip enquanto transa com uma garçonete.
-Você a beijou, hein.
-Só um pouco.
-Por que?
-Porque é gostoso.
-Você a ama?
-Sim, eu a amo. Beijei a bunda dela, não foi?
E os dois caem na gargalhada, fazendo com que o espectador abra um sorriso.
Do outro lado, os policiais, comandados por Red, puxam o histórico do foragido e pensam nas piores hipóteses possíveis. O protagonista só está nessa situação graças a um sistema que se considera superior a qualquer ser humano. Haynes é o produto de seu meio; a verdadeira vítima da história. Como mencionei acima, Red carrega o fardo de ter “criado” um delinquente. Ele não está numa caçada frenética; a perseguição desperta uma certa crise existencial em relação ao ofício que exerce e às medidas impulsivas que já tomou. Sally, que trabalha para o Governador, traz à tona seu lado mais humano e, apesar de não ter a mesma importâncias dos demais personagens, serve também para expor o machismo impregnado no departamento policial.
Haynes e Phillip dirigem por estradas vazias, realçadas por belos planos gerais que transmitem paz e liberdade; Red e seus comandados divergem entre si e, na espera do confronto, seguram armas. A subversão do cenário é brilhantemente estabelecida por Clint Eastwood, que, mesmo investindo em cenas sensíveis, não deixa de mostrar o lado brutal do protagonista. Haynes não suporta ver um pai maltratando o filho. Na sequência mais tensa do filme, ele amarra uma família e prepara, meticulosamente, o terreno para assassinar o patriarca. Sua noção do que é certo e errado não é distorcida, todavia, seus métodos provam que a prisão o fez perder parte de sua humanidade. A montagem insinuante, o choro de Phillip e os close ups de rostos angustiados nos direcionam ao lado apodrecido de Haynes.
O desfecho evidencia novamente o contraste entre os dois núcleos. “Pai e filho” relaxam perto de uma árvore sombreada; o esquadrão inteiro está nervoso e preparado para a ação. Eastwood, além de um grande humanista, é um cineasta atento aos mínimos detalhes. Haynes não tem mais o que fazer, quer apenas entregar algo para Phillip: o cartão-postal do Alasca. Os road movies permitem que laços tão poderosos sejam fomentados…
Clint Eastwood está excelente no papel do xerife em busca de reconciliação com o passado. No entanto, o show é de Kevin Costner, cuja composição é riquíssima. A trajetória assume muitas conotações e ele está lá para encarná-las da forma mais delicada e afetuosa possível, sem abandonar completamente a frieza do criminoso.
“A Perfect World” é uma obra prima irretocável.