Escrever uma crítica sobre um filme de Park Chan-wook não é uma missão simples, afinal, o diretor brinca com a perspectiva do espectador a todo instante, reservando viradas inesperadas que, de forma alguma podem ser reveladas em um texto.
“A Criada” é facilmente a sua obra mais vistosa, bela e erótica. A fotografia passeia muito bem entre uma luminosidade contagiante, uma fumaça que denota incerteza e uma escuridão que reflete na personalidade dos personagens, principalmente a de Hideko. Chan-wook nunca esteve tão inspirado na concepção de quadros exuberantes, seja pelas lindas paisagens, a impecável mise em scéne – capaz de aproximar e distanciar – ou o contraste entre o figurino de determinados personagens.
Como na maioria de seus filmes, ele monta cenários e os desmonta com uma habilidade impressionante. De repente, nossas únicas certezas se tornam dúvidas, os personagens mudam de lado e voltamos a assistir o que já havia sido apresentado por outra perspectiva.
No fundo, “A Criada” é um jogo de olhares, diferentes visões da mesma situação.
Soo-kee é uma jovem batedora de carteiras “contratada” pelo “Conde Fujiwara”, um farsante decidido a se casar com a rica e solitária Lady Hideko, a fim de prendê-la em um manicômio e ficar com a herança, dando uma pequena parcela para sua parceira e família. Pobre, Soo-kee aceita a proposta e, rapidamente, se depara com um universo suntuoso, detalhadamente exposto pelo diretor. Ela é a criada de Hideko, precisa estar ao seu lado a todo instante, sendo também uma espécie de confidente. De acordo com o plano, Soo-kee precisa fazer com que sua patroa se apaixone pelo Conde. Vale ressaltar que seu tio, um aficcionado por literatura, pretende se casar com a própria sobrinha pelos mesmos motivos de Fujiwara.
De branco ou de roxo, Hideko é uma figura solitária, melancólica e ingênua, que, no fundo, sabe que está sendo usada, mas também tem noção de que nada melhor a aguarda. Se o branco dá a ideia de pureza e delicadeza, o roxo tem a clara conotação de punição, possivelmente o suicídio. Nesse sentido, o design de produção e a fotografia são cuidadosos, já que seu quarto é apenas uma extensão de sua personalidade: belo e escuro. Hideko é sincera, gentil e está sempre perguntando para Soo-kee o que os outros pensam dela. Lentamente, a criada vai sendo emocionalmente desmontada, percebendo a crueldade de seu plano, embora mantenha o foco no seu futuro e na quantia que receberia. Chan-wook consegue expor essa ambiguidade com movimentos de câmera precisos e close ups reveladores. Há muito na cabeça de Soo-kee, que, cada vez mais se afeiçoa por Hideko, o que é enfatizado pela proximidade das duas em tela – os rostos que se unem, as mãos que se tocam e as pernas que se cruzam.
Será que vale a pena seguir em frente? Que diferença esse dinheiro faria? Alguns diálogos e trocas de olhares deixam nítidos o horror que Soo-kee passa a sentir do Conde. Se antes as suas falas sobre Fujiwara para Hideko eram enfáticas, agora parecem um tanto murchas. Mais do que a culpa, a criada percebe que está completamente apaixonada por Hideko. Acordos ou sentimentos? As interações se tornam mais genuínas, o toque mais intenso, até que, não aguentando mais a solidão e a frieza de seu pretendente, Hideko convida a criada para dormir em sua cama. Chan-wook, que já apostava em planos que salientavam a proximidade e a cumplicidade das duas, transforma o sexo em uma experiência especialmente íntima, não só para as personagens, mas para o espectador também, que vê as línguas se tocando, os órgãos genitais se acariciando e, principalmente, os rostos que esbanjam um prazer até então reprimido.
Eis que chega o dia, o tio autoritário viaja e o trio principal foge com a intenção de agilizar o casamento. Soo-kee parece desolada, Hideko é uma bela boneca de porcelana – frágil e manipulável – e o Conde é um monstro insensível.
Há um princípio de esperança, de que a situação se reverta, mas Chan-wook não está interessado em dar ao espectador as coisas tão mastigadas assim.
Repentinamente, tudo se inverte, o manicômio está ali, no entanto, não é Hideko que será internada.
A segunda parte se inicia e é aí que o diretor reafirma o seu posto de mestre. Conhecíamos a Hideko idealizada por Soo-kee, afinal, aquela era a sua perspectiva. Seria a protagonista tão ingênua e inexperiente assim? Não estaria o Conde, malicioso como é, à frente de ambas as frentes, planejando algo ainda mais complexo?
Não revelarei o que o diretor reserva para o espectador, direi apenas que Hideko era, sim, uma jovem solitária, desiludida em relação ao amor e com tendências autodestrutivas. Entretanto, a presença marcante de seu tio a transformou numa mulher racional, que conhece os caminhos da perversidade e é capaz de coisas que não imaginávamos.
Chan-wook constrói esse emaranhado de sentimentos e segredos a partir de uma direção inventiva, que explora os diferentes pontos de vista da mesma situação. Ângulos variados revelam planos e reações que não conhecíamos e dão aos personagens uma complexidade ainda maior, fazendo com que o espectador, além de compreender todos os lados, se identifique com eles. Hideko e Soo-kee são mulheres ambíguas e difíceis de se decifrar, porém igualmente solitárias e amorosas. Em pouco mais de duas horas, amamos e odiamos ambas; ouvimos suas histórias e dramas; entendemos o que as duas desejam e o caminho que desejam trilhar.
“A Criada” é um monte de coisas, todavia, acima de qualquer rótulo, é um filme sobre a união feminina e um retrato poético sobre o amor como uma força capaz de livrar seres humanos de amarras tóxicas e malignas.
Chan-wook usa tudo o que sabe. O humor sai de situações mórbidas, sempre bem inseridas, dando ao espectador a oportunidade de respirar em uma narrativa incansável.
A carga dramática está na empatia do diretor, que conta as histórias das moças sem pressa, criando interações honestas e gradativas. Sem os flashbacks, brilhantemente inseridos pela montagem, “A Criada” seria uma obra incompleta.
Chan-wook, obcecado pelos prazeres da carne, ressalta que o sexo é uma força da natureza incontrolável, que une e liberta as pessoas. Seu erotismo é forte e sensível.
O suspense está na expectativa de algo que está prestes a acontecer. O diretor usa planos-detalhe, close ups e alonga certas situações para ter o espectador na ponta da cadeira. Chan-wook brinca com gêneros em suas obras e é hábil o suficiente para torná-los fundamentais para o resultado final.
A trilha sonora é de uma delicadeza incomparável, um complemento perfeito às paisagens e a momentos belíssimos. Ela não depende de uma única melodia, sendo importante para criar uma certa inquietude em determinados momentos.
O design de produção é ambicioso e primoroso. A mansão suntuosa serve de contraste para o vazio que preenche o peito de Hideko. A vila precária e chuvosa em que Soo-kee nasceu “justifica” a sua ideia inicial. Cada ambiente conversa com a personalidade de um dos personagens: a biblioteca gigantesca ressalta a megalomania do tio e o quarto na lua de mel de Hideko e Fujiwara, tomado por paredes cinzas, reforça a frieza e falsidade daquele matrimônio. Em contrapartida, a fotografia no desfecho opta por uma luz quase fantasiosa, enfatizando o quão especial é o momento.
Justo enaltecer, também, a impecável reconstituição de época, desde as locações aos acessórios e figurinos.
A montagem é engenhosa ao trabalhar perfeitamente as passagens de tempo, os diferentes blocos e pontos de vista dos personagens.
Kim Min-hee e Kim Tae-ri merecem o mesmo destaque. São interpretações profundas, que dependem de uma entrega emocional e física enorme. Ambas variam dentro da trama, passam por situações difíceis, trocam de lado, se unem e sempre convencem. As atrizes fazem muito com seus olhares e expressões faciais.
Ha Jung-woo está ótimo como o Conde, um ser desprezível e ganancioso que amamos odiar. Seu sarcasmo rende boas risadas – o final é sensacional. Mesmo sendo unidimensional, seu personagem conversa com os dois lados da história, o que não é simples.
“A Criada” não é o melhor filme de Park Chan-wook, mas é uma das grandes obras primas da última década.
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