Entre 2001 e 2022, Todd Field dirigiu três filmes, o que é uma pena, já que estamos falando de um cineasta que lida com temas complexos com uma naturalidade imensa. Em “Little Children”, ele adentra as profundezas das almas de pessoas aparentemente comuns que vivem vidas indesejadas.
O voiceover é um artifício traiçoeiro, que pode acabar sendo demasiadamente expositivo e desnecessário. Field o utiliza a favor da narrativa, trazendo uma perspectiva enriquecedora sobre personagens incapazes, na maior parte do tempo, de expor o que lhes aflige.
Por ser um filme que se passa no subúrbio americano, numa rua “tranquila”, eu não pude deixar de lembrar de “Happiness”, de Todd Solondz. Em termos estruturais, os trabalhos de Field e Solondz são bastante similares. Há, também, outra característica que os aproxima: ao mesmo tempo em que demonstram uma empatia rara por figuras, no mínimo, nebulosas, os filmes caçoam de alguns comportamentos, num tom quase satírico.
Brad talvez seja o exemplo mais nítido do tratamento do roteiro de Field. Ele é casado com Kathy, tem um filho, mora numa bela casa e estuda para ser advogado. Todas as noites, Brad diz à esposa que vai à biblioteca; no entanto, seu ponto fixo é a pista de skate, onde assiste aos jovens e relembra da época em que tinha controle sobre si. Brad foi reprovado no exame da ordem duas vezes, o que denota um desinteresse absoluto pela profissão. Kathy não percebe tal aflição, pois comprou a ideia da família ideal e apenas aguarda pelo diploma do marido para respirar aliviada. Brad assumiu um estado de inexistência, realizando tarefas automaticamente, sem entender seus propósitos. Seu vazio é tanto, que o simples gesto do filho de tirar um chapéu já se tornou um motivo para entristecê-lo. Repentinamente, Brad é convidado para fazer parte do comitê de proteção do bairro, cuja atividade central é o treino de futebol americano, esporte que ele praticava na juventude. É a oportunidade de voltar a se sentir vivo, de fugir das convenções que regem aquela pequena comunidade. A jovialidade de Brad não está apenas em sua aparência, mas na forma como encara certas situações. Ele não fica encantado com as atividades do passado por acaso; sua ingenuidade, por vezes, passa do limite do aceitável.
Sarah é casada com Richard, um homem bem sucedido e distante que esconde um vicio por pornografia. Eles vivem uma “não relação”, potencializada pelo fato de Sarah não trabalhar. Ela não tem com o que ocupar a mente e passa os dias no parque, com a filha e outras mães desocupadas que primam por uma moral alta. São valores de plástico, que definem somente a casca, impedindo que as pessoas realmente entrem em contato consigo e abordem questões de cunho pessoal. Solitária, Sarah se aproxima de Brad, com quem estabelece um romance. Field trabalha bem as fantasias femininas. Diante de Brad, Sarah vê uma figura divina, o que é ressaltado pelo uso de contra-plongée e pelo reflexo da intensa iluminação. A empolgação pelo maiô vermelho evidencia o seu desejo e a vontade de ficar atraente. Na primeira ida à piscina pública, Field começa com uma câmera subjetiva, dando ao espectador a chance de vislumbrar a liberdade sentida pela personagem. Ao analisar “Madame Bovary”, Sarah fala sobre si: “Não é a traição. É o desejo. O desejo por uma alternativa e a recusa em aceitar uma vida infeliz”. Em um curto diálogo com Brad, Sarah nota que a advocacia não o comove. Eles ficarão juntos? As máscaras que regem a sociedade são resistentes e Field, embora empático, não acredita tanto assim em seus personagens. Não à toa, o caso só se inicia graças a uma chuva torrencial – forças superiores têm que agir para que algo aconteça.
Ronnie passou dois anos preso por se exibir sexualmente para uma criança. Seu retorno ao bairro é cercado de revolta e ódio, o que é salientado pelas centenas de posters com sua foto. Sua primeira aparição, na piscina pública, é reveladora. A partir de um plongée, que se repete posteriormente, Field sacramenta: a sociedade nunca irá perdoá-lo. A princípio, tendemos, por motivos óbvios, a desprezá-lo; todavia, o roteiro é cuidadoso ao caracterizá-lo. Ronnie sofre de intensos distúrbios psicológicos e sexuais e nunca se relacionou com ninguém além de sua mãe, que o ama incondicionalmente. Ele até tenta se ajustar às normas sociais, mas precisa de algo que só é oferecido nos últimos minutos do filme: ajuda. Na cena em que desaba pela morte da mãe, Field, a partir de cortes constantes e da potência do design de som, oferece um olhar assustador da perturbação mental. Não deixa de ser louvável a escolha do roteiro por conectar o arco de Ronnie com o de Larry, seu principal linchador. Field encontra uma linha que os une e os coloca em contato com suas maiores dores. Larry sempre viveu por seu ofício de policial e, ao cometer um erro fatal e ser aposentado, sua vida perdeu o rumo. Demonizar Ronnie é uma chance de ser relevante novamente e de, simbolicamente, retornar a proteger a vizinhança.
Field, que interpretou o simpático Nick Nightingale em “De Olhos Bem Fechados”, de Stanley Kubrick, não tem dúvida de que o senso comum pode ser uma aberração. O cotidiano é ideal para se observar a falência do pensamento crítico real e da dificuldade que a maioria tem para assumir suas versões mais autênticas. Kate Winslet e Patrick Wilson estão impecáveis em seus respectivos papéis, trazendo um alto nível de vulnerabilidade, desejo e dúvida à narrativa. Jackie Earle Haley é um ator que admiro imensamente e sua performance aqui é assombrosa. Ronnie tem um quê perturbador em seu olhar e em sua fala, mas Haley vai além, apresentando as vísceras que o atormentam. “Little Children” é uma obra prima moderna.



