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Mike Leigh é um dos raros cineastas que, mesmo com um estilo muito característico, consegue se adaptar a diferentes tipos de filmes. “Career Girls”, uma de suas obras mais singelas e intimistas, gira em torno de duas amigas que se reencontram após 6 anos. 

Não há momentos catárticos nem grandes revelações, apenas a constatação de que o tempo revela traços essenciais e serve ao amadurecimento. Em sua estrutura, Leigh salta entre passado e presente, expondo, visualmente, as diferenças que precisamos entender. Os flashbacks são tomados por uma mise en scéne caótica, de tons frios, ambientes bagunçados e planos fechados. As personagens se expressam teatralmente, com tiques e trejeitos que salientam a insegurança da juventude. Ambas são vulneráveis, mas de formas opostas. Annie, mesmo asmática, fuma cigarros. Frágil, ela é incapaz de conversar olhando nos olhos de alguém e retém sonhos amorosos. Em determinado momento, Leigh, a fim de sintetizar tal característica, usa uma luz avermelhada em seu rosto. Sua dermatite extrema enfraquece uma autoestima naturalmente baixa. Hannah, em contrapartida, é feroz e insolente. Sua voz demorou a ser aceita pelo meu sistema auditivo, o que, por incrível que pareça, confere complexidade à personagem. 

Leigh, acostumado a ambientar seus filmes em Londres, faz da cidade um espelho das amigas. Há uma certa animosidade no ar, o afeto nunca é óbvio e suas personalidades exalam um caráter underground. Dito isso, todas essas camadas são pequenas quando comparadas à beleza da amizade. Londres, a princípio, pode até repelir, mas reúne uma honestidade que conquista aqueles que se interessam pelos mistérios urbanos. Londres, assim como a dupla central, tem tiques e trejeitos. No presente, Hannah vive em um apartamento de paredes amarelas, com uma bela vista – uma ruptura reforçada pelo excelente trabalho de montagem. Vamos de um plano fechado em um banheiro a um plano aberto de uma rua ensolarada, por exemplo. As aparências e os figurinos soam mais maduros e as falas não são acompanhadas de tanta afetação.

Hannah lamenta pela independência imposta desde cedo, decorrente do alcoolismo da mãe. Annie segue dependendo da mãe, com quem vive. Elas parecem ter contornado as adversidades do passado; mas, afinal, mudaram muito? Leigh realiza um filme de cunho feminista, que saúda a vitória de jovens à deriva que souberam se reinventar sem perder a essência. Hannah continua tendo dificuldades em demonstrar afeto e Annie ainda desacredita no seu potencial de conquistar homens distintos. Em uma das melhores interações, Hannah diz admirar a inocência de Annie, que, por sua vez, estima a força da amiga. Elas próprias não reconhecem tais qualidades em si, precisando de uma visão alheia para perceber que são dignas de elogios. Uma completa a outra; uma faz a outra entrar em contato com sentimentos e reações que jamais sairiam de seus peitos. No naturalismo de Leigh, risos e lágrimas andam de mãos dadas. Ele não está interessado em pintar retratos simpáticos. É possível que você não goste das personagens; todavia, é quase impossível que não note a empatia do realizador e a humanidade de uma dupla que desbrava suas inseguranças para seguir adiante. 

Annie passa apenas um dia em Londres, o que enfatiza a solidão de ambas. Ao longo dessas horas, a dupla passa por uma série de encontros fortuitos. Adrian, que, no passado, disse: “Vagina, ótimo lugar. Não gostaria de viver lá.”, trabalha como vendedor de imóveis e está casado. Ricky, que gagueja e fecha os olhos ao falar algo profundo, parece ter guardado a dor das rejeições amorosas. Leigh confecciona tais reencontros para ressaltar que, por mais que o tempo passe, certas características jamais somem – estas, na verdade, definem quem somos. Adrian pode até construir uma família, mas sempre será uma figura estúpida. Ricky pode até olhar para frente, mas nunca deixará de ser atraído pelo ódio da rejeição. 

No fim, cada uma vai para casa, sem grandes promessas. Katrin Cartlidge casa perfeitamente com a proposta de improviso de Leigh. Sua química com Lynda Steadman é o ponto alto de um filme que merece ser redescoberto.

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