Assistir a um filme, mesmo numa sala lotada, é sempre uma experiência muito pessoal. Eu não tenho dúvidas de que muitos dos críticos que acompanharam a primeira sessão de “The Stranger”, adaptação do clássico de Albert Camus, dirigido por François Ozon, devem tê-lo achado pretensioso ou vazio. Eu não poderia discordar mais dessas pessoas e essa é uma das graças do debate cinematográfico: as impressões acerca de uma obra variam de acordo com a personalidade e a visão de mundo de cada um, não apenas de uma análise formal.
Ao receber a notícia da morte de sua mãe, Meursault reage friamente e prepara o enterro, no qual também não esbanja qualquer emoção calorosa. Ele nem sequer consola aqueles que choram e, na igreja, levanta-se por obrigação. Indiferente em relação a tudo que o cerca, Mersault demonstra maior interesse por um besouro que pousa em sua mão do que pelas pessoas. Seu patrão lhe oferece uma promoção, com direito à mudança para Paris, mas ele não acredita em mudanças na vida. Marie o atrai, no entanto, não podemos dizer que seus sentimentos vão além do prazer carnal. A moça, encantada, fala sobre o amor e a possibilidade de um casamento. “Isso não significa nada”, afirma o protagonista, com a mesma expressão de sempre – esteja ele no cinema, em casa ou num enterro. Meursault é intransponível? Não, pelo contrário, ele é sincero demais em suas colocações, o que o transforma numa figura a ser apreciada.
Quando Mersault diz: “Eu não sei”, trata-se da verdade de um jovem que admite desconhecer os processos que estimulam a mente humana e que, de certa forma, moldam a sociedade. O que ele sente pelo vizinho que agride o cachorro? Por que sua passividade é inalterável? E, mais inquietante: Por que ele é tão hipnotizante e fascinante de se acompanhar? Em “The Stranger”, eu tive a estranha sensação de estar diante de um espelho que refletia uma imagem, ao mesmo tempo, estranha e íntima. Meursault é um reflexo das profundezas da alma de cada ser humano; daquilo que ele evita, aprendeu a controlar ou simplesmente nunca entrou em contato. O “absurdismo”, ou seja, o reconhecimento da ausência de sentido na vida e o ato de se alienar perante a convencionalidade que rege tal sistema, é uma corrente filosófica que conversa diretamente com os maiores medos e angústias humanas. O homem, racional por natureza, choca-se com a parede insolúvel da irracionalidade do universo. Sem um propósito nítido e impactado pela indiferença do mundo em relação às suas necessidades, ele se divorcia da vida, vagando pelos cantos como alguém que observa o absurdo mundano e que apenas espera por sua hora de partir. Camus, ao abordar o “absurdismo”, acredita no poder da revolta; o poder de abraçar o absurdo em seus termos e viver apaixonadamente – o mito de Sísifo é a metáfora que melhor sintetiza tal liberdade.
Meursault é o nosso outro lado da moeda e vê-lo, ainda mais a partir das lentes de Ozon, é uma experiência convidativa e desafiadora. Para o protagonista, a amizade, o amor, o casamento e o cinema são, nada mais nada menos, que distrações; para nós, são condutores de energia e sabedoria. A sequência mais impactante do filme é aquela em que o protagonista, preso numa cela escura, recebe a visita de um padre. Os opostos digladiam, defendendo suas teses e princípios. Ozon conduz a obra com empatia, examinando o rosto “estrangeiro” com a atenção de um artesão. Seu cuidado é exposto na decupagem, na duração dos planos e no caráter abrupto das transições – sua narrativa está em total harmonia com a desarmonia sentida por Meursault. A fotografia em preto e branco é deslumbrante, assim como os enquadramentos e os suaves movimentos de câmera de Ozon – você pode até sair com a sensação de vazio, mas se deparará com imagens lindíssimas.
Na trama, Meursault mata um árabe que importunava Raymond, o mais próximo que ele tem de um amigo. O assassinato parte da simples indiferença às “leis da natureza”, não do ódio ou da sede por vingança. Como ele mesmo diz, o disparo foi causado pelo sol que invadiu os seus olhos – o primeiro, sim; os outros, não. O protagonista, então, é condenado à pena de morte, mas por ser dono de uma personalidade fria e distante, não pelo ato em si; afinal, ninguém é preso por matar um árabe. Ambos os estrangeiros – o literal e o metafórico – são anulados por um regime que considera somente seus semelhantes. O absurdo que nos cerca é ratificado no tribunal, o lugar onde ordem e sensibilidade deveriam imperar. Benjamin Voisin está perfeito no papel de Meursault. A economia de movimentos corporais, a expressão facial que denota uma absoluta desconexão e as raras alterações na entonação vocal são fundamentais na composição do protagonista.
“The Stranger” talvez seja o filme mais irrepreensível exibido nesta edição do Festival de Veneza.