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Em determinado momento, Maurice, um romancista, afirma que é muito mais fácil escrever sobre a tristeza do que sobre a felicidade. É verdade e isso se aplica, especialmente, às histórias de amor. “The End of The Affair” não poderia ser mais britânico, o que é um elogio e tanto.

As paixões sombrias e as releituras de um sentimento que costuma ser precariamente descrito são muito bem vindas; ainda mais nas mãos de um diretor talentoso que escolheu a dedo o seu elenco. A trilha sonora de Michael Nyman, conhecido por sua parceria com Peter Greenaway, encanta os ouvidos ao mesmo tempo em que esmaga a alma do espectador, que, logo de cara, é surpreendido com um tema denso em sua melancolia. “Não, eram os passos de Sarah”, diz Maurice, corrigindo Henry, seu amigo, que não foi capaz de perceber as nuances do caminhar da própria esposa. A situação não é difícil de prever: Maurice e Sarah são amantes.

Um dos principais motivos pelo êxito do projeto, é a sua ambiciosa e fraturada estrutura narrativa. Durante a Segunda Guerra Mundial, Maurice e Sarah se apaixonaram e viveram um romance intenso. O pano de fundo acaba sendo essencial para salientar as incertezas e o caráter atormentador que uma paixão pode ter. O protagonista acredita que o tamanho do amor é igualmente proporcional ao tamanho do ciúme; ou seja, sua mente não o deixa em paz, imaginando a amada com outros homens. Maurice não é um amante que se limita aos prazeres da carne; pelo contrário, sua paixão é tanta, que flerta com a obsessão. Após uma explosão, Maurice cai da escada, deixando Sarah atônita, convicta de que ele morreu. O protagonista, machucado, retorna ao quarto. Pouco tempo depois, sem maiores explicações Sarah encerra o caso e fica dois anos sem vê-lo. O que aconteceu? Teria o ciúme do escritor sufocado a pobre coitada? O que passou pela cabeça de Sarah enquanto Maurice estava desacordado?

No presente, o protagonista, a fim de descobrir a verdade, contrata um detetive para investigar Sarah. Os mal entendidos nos desviam da verdade; o ódio e a infelicidade enviesam nossos olhares à tragédia e ao esquecimento. Sua “leve curiosidade”, eventualmente, serve de algo. A montagem, que já impressionava com as rápidas inserções de flashbacks, diferenciando o passado do presente, “embaralha” a narrativa para, aos poucos, apresentar o cenário completo; os dois lados da moeda. Se antes estávamos presos às dúvidas e angústias de Maurice, agora, entendemos as motivações de Sarah, que, após um desejo concretizado, se depara com um amor que não se enxerga nem se toca. Esse é o cerne da crise do casal extraconjugal: cético e inimigo de qualquer fé, o protagonista nunca seria capaz de compreender a convicção espiritual/divina que assolou o peito de Sarah. Ela não buscou respostas, mas Ele as deu mesmo assim. “O Senhor me esvazia de amor e preenche esse vazio”. Ao cumprir sua promessa (leia-se, sacrifício) e acreditar no oculto, Sarah adere ao modo estátua; a uma realidade inócua e letárgica. O amor entre os dois nunca morreu e até há um princípio de esperança; todavia, ninguém é imune aos compromissos quebrados com Deus. Morta de qualquer forma, Sarah prefere perecer com um sorriso no rosto. 

Potente em seu discurso sobre a fé, “The End of The Affair” é uma tragédia romântica cuja maior força está no mundo das sensações. O trabalho de fotografia é magistral, sendo o ponto de maior destaque do filme. Não existem espaços convidativos; as ruas são intoxicadas por tons frios (entre o cinza e o azul) e por uma névoa de maus prenúncios. A chuva é frequente, como se fossem lágrimas desabando do céu. O uso sutil de soft focus confere uma fragilidade ainda maior às relações e aos personagens, o que também é pontuado pelo uso de ângulos holandeses. O figurino vermelho de Sarah é um símbolo que reforça sua natureza apaixonada. A direção de arte acerta ao caracterizar a casa de Sarah e Henry como impecável, dialogando com o casamento de aparências que eles mantêm há tempos. Henry é como uma de suas almofadas; um homem inexpressivo que pode até nutrir sentimentos amorosos por Sarah, mas que é incapaz de demonstrá-los. Talvez ele esconda algo sobre sua natureza. Neil Jordan merece elogios por orquestrar um equilíbrio de perspectivas, apresentando pontos de vistas distintos a partir de ângulos distintos de cenas que já conhecemos. Sua mise en scéne é preciosa. Perto do fim, Henry e Maurice conversam com um padre. De frente para o padre, em pé de igualdade, está Henry, o marido; ao fundo, com o rosto do padre em primeiro plano (o que gera um desconforto proposital), está Maurice, o amante – em uma sequência, teoricamente, simples, Jordan desenha a moral católica e o desprezo do protagonista pela religião.

Ralph Fiennes e Julianne Moore tiram seus papéis de letra, abraçando a poesia romântica e a estética melancólica. “The End of The Affair” merece ser redescoberto.

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