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A impressão que eu tenho é de que Robert Altman é um pintor. Ele trabalha com uma tela gigantesca e é cuidadoso ao cercar seus personagens, impedindo que escapem do panorama geral. Esse é o tipo de filme que precisa ser visto para crer na proeza de um cineasta em total controle sobre sua arte. Altman entendia a cultura, as profundezas e os anseios do povo americano. Durante pouco mais de três horas, acompanhamos o cotidiano de 22 personagens (acho que é isso). Não seria justo categorizar “Short Cuts” como um épico. Não há nada de grandioso na vida dessas pessoas e Altman, empático e brilhante, confecciona um retrato íntimo de uma sociedade em busca de conexão. A quarentena, devido a uma infestação de insetos em Los Angeles, é uma forma inteligente de abrir a narrativa e de interligar os personagens. Para cada núcleo, há um sabor diferente, e a espetacular montagem confere uma fluidez enorme à narrativa. Algumas transições são especialmente elegantes por estabelecerem uma conexão entre os distintos núcleos. A fumaça que está prestes a subir na garagem é interrompida pela fumaça da churrasqueira. Após um acidente que, posteriormente, descobrimos ser fatal, o corte nos leva a uma propaganda televisiva: “Acidentes acontecem todo dia. Felizmente, a maioria é inofensiva”. A ironia é notável e faz parte de existências extraordinariamente comuns.

A trilha sonora jazzística conversa com a imprevisibilidade cotidiana, ditando o passo de seres perdidos em mentiras, traumas e na falta de escrúpulo. Alguns precisam da novidade e do prazer sexual, outros clamam apenas por uma companhia especial; alguns querem pedir desculpas pelo passado, outros retém emoções destrutivas ou impressionam pelo descaso. O que é a relação humana sem cumplicidade? Por que as pessoas se casam e têm filhos se não fazem o mínimo esforço para demonstrar empatia e fidelidade? A solidão é o mal do século. Pior que a solidão constatável, é a solidão da alma, aquela que transforma homens e mulheres em animais em busca de braços estranhos. É melhor estar mal acompanhado do que sozinho. Como mencionei acima, cada núcleo tem um sabor específico, o que, talvez, seja o grande mérito do roteiro. Vamos de uma situação trágica a uma cômica com uma inusitada agilidade. Altman não pensa numa obra triste ou feliz; seu filme é sobre a trajetória humana no meio urbano mais conturbado possível – como na vida, há de tudo.

Seria impossível falar detalhadamente sobre cada personagem e, caso tentasse, atrapalharia a sua experiência, já que, acompanhar os “improvisos jazzísticos” destes indivíduos é um prazer inestimável. O trabalho de direção de arte é impecável, sendo fundamental na caracterização de cada núcleo. Marian e Ralph vivem numa casa luxuosa, marcada por quadros, cavaletes, espaços amplos, um piso moderno e uma bela varanda. Ela é uma pintora e ele, um médico renomado. Ela gosta de explorar sua sexualidade; ele é um tanto conservador e pragmático. As máscaras estão ali, refletidas na residência, nos diálogos pouco relevantes e na imagem de poder. Talvez Ralph saiba de algo; talvez esteja de saco cheio. Earl é um motorista de limusine alcóolatra cujo temperamento instável incomoda Doreen, garçonete de um diner. São vidas difíceis, quase miseráveis, o que é ressaltado pelo pequeno e confuso trailer – pelo menos parece um – em que moram. Se existem almas gêmeas em “Short Cuts”, são esses dois – sozinhos, são pobres criaturas. Ann e Howard Finnigan formam o típico casal de classe média alta. Ele é um meteorologista em ascensão e ela, uma dona de casa. É o tipo de casal que faz questão de combinar o papel de parede com as cortinas e o edredom. Por vezes, Altman é irônico sem que o espectador perceba. Em uma situação emergencial, Ann não faz a menor ideia do que fazer, afinal, não está acostumada a realizar tarefas que exijam um nível elevado de inteligência. Os Finnigan são o exemplo central de que a vida perfeita pode desmoronar sem aviso prévio. Todos estão sujeitos a tragédias; o cotidiano é escrito em linhas tortas. Em meio a esse repentino caos, uma figura inusitada aparece para pedir desculpas. Paul, pai de Howard, soberbamente interpretado por Jack Lemon, surge vestido de bom moço e demonstra uma hombridade louvável ao tentar espantar fantasmas do passado, apesar de lhe faltar timing. O desconforto de Howard, somado à honestidade de Paul, faz desta uma cena profundamente humana e dura. Jerry está à beira de explodir. Lois, sua esposa, trabalha como atendente de telesexo. Enquanto alimenta e brinca com os filhos, ela profere obscenidades. A casa, rodeada de brinquedos e almofadas coloridas, reforça os sentimentos oprimidos do marido e o quão inapropriado é o ganha pão de Lois.

A grande marca de Altman é fechar o quadro a fim de expor aflições e reações – os zooms permeiam a narrativa inteira. Há muitos personagens, porém, de alguma forma, os conhecemos o bastante para adivinhar suas próximas ações. O cineasta oferece uma experiência íntima e singular, alcançando o raro feito de estudar os indivíduos e o meio no qual estão inseridos. Seus movimentos de câmera nos levam a enxergar algo a mais, como, por exemplo, a placa de trânsito que garante a preferência ao pedestre e o cadáver que está largado no lago. Altman tem o dom de extrair humor de situações embaraçosas e sabe que a distância dos corpos – do sexo a diferentes cômodos – é suficiente para entendermos que algo não está certo naquela relação. O paralelo entre a televisão sem sinal e o estado físico de um determinado personagem é de uma sutileza grandiosa. Se no início, Altman conecta todos a partir de um fenômeno natural, o mesmo acontece no desfecho – organicamente amarrados.

O elenco é realmente de outro mundo. Preparem-se para uma extensa lista de talento abundante: Andie MacDowell, Bruce Davison, Tim Robbins, Madeleine Stowe, Chris Penn, Jennifer Jason Leigh, Frances McDormand, Peter Gallagher, Matthew Modine, Julianne Moore, Tom Waits, Lily Tomlin, Robert Downey Jr., Lili Taylor, Anne Archer, Fred Ward, Lori Singer, Annie Ross, Huey Lewis e Lyle Lovett. Sim, eu sei, são muitos nomes, no entanto, seria injusto se não os citasse.

“Short Cuts” é uma obra prima inimitável, cercada pelas maiores imperfeições, qualidades e emoções humanas.

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