Abel Ferrara, assim como Martin Scorsese, insere, em maior ou menor grau, a religião às suas narrativas. “Mary” talvez seja o seu projeto mais abertamente católico. Tony Childress acabou de finalizar as gravações de “Este é meu Sangue”, filme baseado em evangelhos que colocam Maria Madalena no posto de apóstolo mais próximo a Jesus Cristo.
Marie, atriz escalada para ser Maria Madalena, fica tão imersa na história, que decide dar um tempo na carreira e fazer uma espécie de peregrinação em Jerusalém.
Ted Younger é um jornalista que, mesmo cético em relação à fé católica, tem crescido na televisão com um programa no qual entrevista historiadores e especialistas na vida de Jesus.
Childress é um provocador, o tipo de cineasta que decide fazer um filme religioso apenas para incitar os mais fervorosos e se perpetuar nos holofotes. Por mais válida que sua perspectiva seja, Childress não liga para o debate, apenas para os milhões que a polêmica deve gerar, provando ser, ao longo do tempo, egocêntrico e arrogante – não à toa, ele mesmo interpreta Jesus Cristo.
Quando as gravações terminam, Marie parte em sua jornada particular. Um ano se passa e ela segue lá. Por que? Bem, isso não fica inteiramente claro; todavia, tendemos a acreditar que a cobrança excessiva de Childress a fez esquecer de sua antiga identidade, assumindo o papel de Maria Madalena fora do set.
Não estamos falando de uma personagem bíblica qualquer, mas de uma mulher que, segundo diferentes escritos, se enquadra em diversos papéis. Prostituta, amante de Cristo ou Apóstolo? Em Jerusalém, Marie busca a sua verdade, chegando à conclusão de que aquele é o seu lugar, não a tumultuada e falsa Hollywood. Sua voz não se assemelha a de uma pessoa que habita o caos cotidiano, mas de uma mulher serena e espiritualmente evoluída.
Ted vive o seu auge profissional; por outro lado, apesar de estar em vias de se tornar pai, adota a postura de marido ausente. O programa em rede nacional representa uma mudança de status, no entanto, o tema não lhe traz nada além de um considerável vazio – salientado, também, pela relação extraconjugal que mantém.
Eis que Ted chega em casa e sua esposa, com complicações clínicas, está internada no hospital. A vida dela e do bebê correm risco. Onde ele estava? Escutando sobre aquele que embaralha sua noção sobre tudo. A janela de tons roxos ressalta a sua complexa espiritualidade; Jesus foi quem o impediu de estar em casa ou quem lhe deu uma chance de reconstruir sua família? Ao ver Ted finalmente lúcido, tendo noção da inversão de valores que promoveu e dos pecados que cometeu, é difícil não admitir que a fé ainda tem um papel fundamental na trajetória humana. Ferrara deixa claro que, normalmente, buscamos a fé quando já estamos no inferno, o que, por si, diz muito sobre nós, seres humanos que se consideram autossuficientes. A imagem de Jesus crucificado sempre será forte e, naquele momento, revela algo novo a Ted: nossos descuidos acarretam dores homéricas.
A montagem e o design de som estabelecem paralelos brilhantes entre os personagens e situações específicas, como, por exemplo, na explosão em Jerusalém que “ressoa” na situação frágil do recém nascido. Ferrara sabe a hora de movimentar a câmera a fim de conferir um realismo peculiar. O contraste entre a quente Jerusalém e Nova Iorque, dominada por arranha-céus e tons azulados, é fundamental para entendermos a realidade e o presente de cada um. A estreia de “Este é meu Sangue” é retratada de forma documental, com direito a manifestações e entrevistas. O comportamento de Childress confirma o que sabíamos. Ferrara termina seu filme combinando caos e espiritualidade, respeitando o que a fé representa para os três personagens.
Juliette Binoche e Matthew Modine se desvencilham de algumas armadilhas, oferecendo performances fascinantes. Dito isso, o grande destaque é Forest Whitaker, que aproveita o intenso arco de Ted para mergulhar nas profundezas de um homem em conflito com seus valores e prioridades.
“Mary” é mais uma valiosa joia na filmografia de Abel Ferrara.