Eu recomendo uma sessão dupla: “Day For Night”, de François Truffaut, e “Dangerous Game”, de Abel Ferrara. Primeiro, você vai sentir a paixão do icônico cineasta francês pelas particularidades do fazer cinematográfico; depois, adentrará as entranhas do inferno. O espelho reflete uma imagem. A linha que divide o rosto é a linha tênue que separa o homem do artista; os estilhaços formam o retrato mais autêntico de alguém que não se reconhece mais fora da selva. Eddie é um diretor de cinema. Seu novo filme é sobre um casal em desarmonia. Antes, adepta ao materialismo da vida burguesa americana, ao uso de drogas e ao sexo extraconjugal, a mulher, arrependida, decide se purificar com as palavras de Deus. O marido, por outro lado, tem plena convicção de que todos esses vícios são tão religiosos quanto a descoberta da esposa, que ele julga ser falsa. O homem, traído pelo sonho burguês, não encontra satisfação em nada e se transforma num ser abusivo.
O diretor é o coração, a alma e o cérebro do projeto, guiando os atores e a equipe às profundezas de sua autoralidade. Ferrara utilizou diferentes câmeras de diferentes texturas, conferindo, por vezes, um aspecto documental à narrativa. Assistimos às reuniões, presenciamos os conflitos e as marcações de cena. As paredes cinza do cenário indicam a esterilidade e a opressão da relação entre o casal e, aos poucos, percebemos que também conversam com a existência de Eddie. Esqueçam o glamour hollywoodiano, Ferrara faz filmes sujos sobre realidades imundas e figuras que vivem num eterno purgatório. Ele gosta de manter o quadro fechado, de colocar seus personagens em contato com as sombras que os atormentam e de dar aos seus atores a chance de enlouquecer no processo.
Francis, o ator, personifica todos os defeitos dos chamados method actors. Seu personagem bebe, se droga e é agressivo, logo, antes de Eddie gritar “ação”, ele se entope de whisky e cocaína e se sente no direito de humilhar Sarah, a atriz – talvez a cocaína seja o seu método de vida, não de interpretação. Hollywood é uma escola de pequenos monstrinhos, Deuses do submundo das ilusões. Eddie está contando uma história de cunho pessoal e, às vezes, se esquece de dizer “corta”, de tão preso que está à encenação. Ele exige um comprometimento que flerta com o abuso psicológico; quer que Francis atinja um nível específico de desespero e que Sarah se sinta mal o bastante para oferecer a performance mais genuína possível. É fácil aplaudir no cinema; difícil é descobrir como tal obra foi realizada. Eddie é apresentado num jantar familiar. Tudo soa lindo, no entanto, quanto mais ensaios vemos, mais percebemos o caráter autobiográfico do projeto.
Para Ferrara, o set não é a igreja da arte, mas uma representação do inferno astral de um artista que busca maneiras de exorcizar seus demônios internos. Eddie não está fazendo aquele filme por crer na qualidade da história, mas por entender que é a única forma de expor o que tanto o aflige. Hollywood é um buraco negro que engole sem pedir permissão e te transforma na sua versão mais desprezível. Como mencionei acima, é a terra que mente para os homens, fazendo-os acreditar que são seres intocáveis, cuja autoridade vai ao encontro da impunidade absoluta. Eddie transa com Sarah, mais uma para sua extensa lista de colegas que foram para a cama com o líder da produção. Em casa, a família senta à mesa e conversa carinhosamente. O protagonista sabe que aquilo, infelizmente, não é verdade. O processo criativo é, simultaneamente, uma sessão de terapia e de tortura; é preciso perder-se nas profundezas da escuridão para tentar retornar à superfície. A esse ponto, depois de anos em Hollywood, as chances de Eddie não são muito grandes.
O passeio pelas trevas da alma humana escancara a agressividade do diretor, que, no processo, carrega seus atores consigo. Quando sua esposa surge em meio às gravações, Eddie a trata com distância, afinal, naquele momento, sua alma está por aí, perdida. O fazer cinematográfico é a permissão para enlouquecer e entrar num estado de transe. A imagem da cidade em névoa salienta a perspectiva de um homem incapaz de enxergar o básico; um homem que mal se lembra do passado. Poucos filmes são tão implacáveis em sua crítica à Hollywood – Ferrara despreza o glamour – e pessimistas em relação à carreira de diretor. A fala de Herzog, no documentário “Burden of Dreams”, é certeira: aquilo é viciante e pode até resultar em algo fantástico, mas ninguém irá convencê-lo de que a experiência foi boa. O cinema é a arte do submundo, da loucura, dos traumas e do desespero. O amor está morrendo e, sem ele, fica somente o tormento. A opção por finalizar o filme no set, na gravação da última e desesperançosa cena, é perfeita – é a realidade de Eddie.
Harvey Keitel, parceiro habitual de Ferrara, está espetacular. Seu vazio e sentimentos destrutivos ficam gradualmente à mostra, o que é mérito de um ator que sabe exatamente como reagir a diferentes situações. Madonna (ela mesmo) convence no papel de Sarah, uma celebridade que é emocionalmente drenada pelo aspecto sombrio da produção.
“Dangerous Game” é uma obra prima oriunda da mente de um cineasta transgressor.