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Hal Hartley é um dos principais cineastas independentes de todos os tempos e é uma pena que seu nome não surja com mais frequência em debates. Seus filmes são pérolas autorais que exploram a complexidade humana de uma forma bastante particular. O estranhamento é uma reação natural, no entanto, assim que entendemos o comportamento peculiar de seus personagens, percebemos que não se trata de uma vontade de soar cool ou “indie”. Hartley é dono de uma sensibilidade artística que o coloca numa categoria privada e, apesar de jamais flertar com a ficção científica, ele leva o espectador a lugares inimagináveis. Ao subir dos créditos, a sensação é de que aquele universo, a princípio, distante, é o único possível. A miséria emocional e o vazio, antes bizarros, ganha contornos reais e relacionáveis. Hartley sabe quão difícil a vida pode ser e “Trust” é a síntese de seu cinema.

O close-up em Maria indica sua posição na narrativa e reforça o exagero de sua maquiagem. Ela foi expulsa da escola, está grávida e quer se casar. Seus pais não admitem tal comportamento. Os insultos vêm à tona e o pai, após levar um tapa, tomado pelo desgosto, sofre um ataque cardíaco e morre. Matthew é perito em consertar dispositivos tecnológicos, todavia, além de não suportar o ambiente de trabalho, tem princípios que o impedem de obedecer certas regras – a gravata largada é um símbolo definitivo. “Você passa por empregos como a maioria das pessoas passa por roupas íntimas”, afirma seu pai, com quem nutre uma relação dominada pela opressão. Ele tem dificuldade em controlar sua raiva e carrega uma granada em seu bolso. Em determinado momento, seu “superior” o obriga a lavar o banheiro repetidas vezes e a opção de Hartley por enquadramentos idênticos ressalta o vazio do cotidiano de Matthew. O plano-detalhe do cigarro na pia nos prepara para uma briga generalizada, mas o jovem mal reage, aceitando a condição de sub-humano.

Matthew não ama ninguém, é imune ao álcool e mantém sua expressão taciturna. A montanha de livros serve de refúgio, salientando sua total desconexão com tudo o que o circunda. Ele não tem desejos, pois nunca entrou em contato consigo; não sai do buraco, pois não confia em ninguém. Enquanto isso, Maria sofre uma série de baques: seu namorado é egoísta, sua mãe a expulsa de casa, sua amiga a ignora e o vendedor de uma mercearia tenta estuprá-la. Hartley encontra a dosagem perfeita entre o drama existencial e o humor ácido. Algumas sequências, que poderiam ser apenas sádicas, despertam risadas inesperadas, seja pela maneira que algo é dito, seja pela escala dos acontecimentos.

Eis que, sem teto, Maria é encontrada por Matthew, que, de imediato, se identifica com a garota e a acolhe – claro, mantendo seu estilo sombrio.

-Na verdade, não sou uma assassina, mas pensei em me matar.

-Eu sei o que você quer dizer.

Juntas, as almas à deriva estabelecem uma conexão “hartleyana”, calcada numa gradual confiança e na sensação de estar protegido. O roteiro explora temas como a dificuldade de adentrar a vida adulta, de sobreviver sem o afeto familiar e de encontrar uma vocação profissional. São essas dificuldades (e algumas outras) que unem jovens tão desconjuntados e que, no fundo, acreditam que não são dignos de tal cuidado e empatia. Maria é míope e Matthew, carinhosamente, a incentiva a colocar os óculos. “Eu gosto de bibliotecárias”. Matthew tem uma visão deturpada do amor e quando Maria questiona seus sentimentos por ela, ele é sincero: “Respeito e admiração”. O roteiro, a partir das irmãs e da mãe da protagonista, expõe a ruína feminina. Objetificadas e acostumadas com a subordinação, essas personagens exalam conformismo perante a dependência.

A trama tem as suas reviravoltas e acompanha a trajetória do “casal”. A tentativa de Matthew de trilhar uma carreira estável, ao mesmo tempo em que é engraçadíssima, evidencia uma importante mudança no seu padrão emocional – por mais que não consiga, ele está disposto a fazer com que as coisas deem certo. Em uma discussão familiar, Hartley fixa a câmera no rosto de Matthew, cuja “inexpressão” denota incômodo com a crueldade a qual Maria é submetida. A fotografia em tons frios e a direção de arte, que destaca a falta de alegria nas residências, são essenciais à narrativa. Nesse sentido, a trilha sonora funciona como um hino para os desajustados e solitários.

-Por que você está fazendo isso?

-Fazendo o que?

-Me ajudando tanto.

-Alguém tem que fazer isso.

-Mas, por que você?

-Aconteceu de eu estar aqui.

Hartley, à sua maneira, costura o desfecho mais belo e otimista possível.

Adrienne Shelly e Martin Donovan oferecem performances milimétricas, conferindo profundidade ao universo idealizado pelo cineasta nova-iorquino. Donovan, em especial, que trabalhou com outros diretores de renome, nunca esteve melhor.

“Trust” é uma maravilha que não se encontra em qualquer esquina.

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