A estrada é longa, mas não importa: Joe Buck está a caminho de Nova Iorque, onde se apresentará como o caubói disposto a satisfazer mulheres ricas. Ele acha que chegará lá e que tudo será fácil, que o simples fato de se fantasiar da versão michê de John Wayne atrairá centenas de clientes. Seu olhar denota ingenuidade, seu ânimo é contagiante e a canção “Everybody’s Talkin” dita seus passos com perfeição. Através de flashbacks, inseridos de forma violenta, descobrimos que Joe também está fugindo de memórias do passado, de um amor brutal e da péssima relação que tinha com sua família.
O protagonista é apenas mais um na multidão. Nova Iorque é a metrópole da desilusão e Schlesinger explora o seu submundo, trazendo à tona as ruas sujas, a escuridão e os letreiros luminosos. A única mulher que cai na lábia do caubói, ao descobrir que ele é um garoto de programa, fica enfurecida. Joe não tem noção do que é socialmente aceito, não entende o quão afrontosa sua fala é, apesar de ser bem intencionada. A crueza das imagens, o uso de câmera na mão, os tons frios, os close ups e os zooms ressaltam a dura realidade que o protagonista enfrentará. Despejado do hotel, ele se vê obrigado a aderir a tendências que, com certeza, afetam sua virilidade. O cliente gay no cinema representa o oposto do que Joe havia idealizado e desperta um vazio até então desconhecido.
Existem outros caubóis por aí, todos infelizes e trágicos, e o protagonista, apesar de não perder sua essência, se adapta ao meio em que está. Enrico Ratso, a princípio, se apresenta como o agente ideal para catapultar a carreira de Joe, todavia, não demoramos a descobrir que ele não passa de um trambiqueiro manco. Eventualmente, por necessidades mútuas, os dois viram grandes amigos. O apartamento que dividem é o símbolo dos esquecidos, dos sonhadores do submundo nova-iorquino. Por trás do jeito “espertão”, Ratso esconde uma enorme vulnerabilidade, exposta por Dustin Hoffman na voz anasalada, na dificuldade que tem para andar e nas expressões faciais que exalam solidão.
Em determinado momento, Ratso, no meio da rua escura, sonha com a ensolarada Flórida, com uma vida alegre e tranquila. A cena é desoladora, realçada pelos brilhantes trabalhos de montagem – enfatizando que a realidade está na desesperança habitual – e de fotografia – que aposta num forte contraste de tons. A existência da dupla é baseada, exclusivamente, na sobrevivência diária. A partir de furtos e vendas de alguns objetos, eles atingem tal objetivo. Na miséria absoluta, Ratso e Joe fomentam uma amizade poderosa – o único alicerce que têm nesse mundo cão. Enquanto tentam emplacar a carreira do caubói, o trambiqueiro fica cada vez mais doente, o que é potencializado por sua aparência debilitada, pelo frio que cobre a cidade e pelo estado deplorável do apartamento. Em uma festa para artistas underground, Joe experimenta diferentes drogas. Os cortes, as imagens distorcidas e a intensidade das cores – destaque para o vermelho – provam que este filme é um produto de sua época, um retrato fiel das tendências culturais e do cinema da “Nova Hollywood”.
O carinho do protagonista por Ratso fica ainda mais evidente quando um cliente inseguro se recusa a pagar e ele, num breve instante de raiva, o espanca. A montagem alterna entre o rosto do cliente e de Ratso, adentrando e compreendendo a psique de Joe, que faz aquilo pelo bem do amigo. O desfecho alcança o feito de ser, simultaneamente, triste, amargo, belo e esperançoso. O protagonista joga sua fantasia fora, deixa os braços à mostra, percebe que pode ganhar a vida de outra maneira – o meio urbano não é o habitat natural de um caubói. A ensolarada Flórida estava ali, era real e as risadas dos nossos companheiros despertam um sorriso involuntário. Os coqueiros refletem no rosto de Ratso, mas ele… bem, ele se foi.
Dustin Hoffman e Jon Voight atingem um nível raro de autenticidade. Suas composições impressionam pelas nuances que evitam que seus personagens se tornem unidimensionais. Voight encanta pela pureza que constrói através de olhares e pela raiva contida que exibe sutilmente. A solidão e o medo abrem espaço para uma das amizades mais importantes da história da sétima arte.
“Midnight Cowboy” continua sendo uma obra influente e foi, merecidamente, premiada pela Academia.