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Em “Day For Night”, François Truffaut nos leva para os sets de uma produção, é minucioso ao reforçar a importância de todos os envolvidos e nos deixa enlouquecidos. O diretor é quem responde a todas as perguntas, fazendo as vezes de diplomata, psicólogo, pai e amigo. Realizar um filme é uma tarefa para os loucos e apaixonados. O glamour fica para o imaginário popular e Ferrand, interpretado pelo próprio Truffaut, cuida dos mínimos e imprescindíveis detalhes.

Se uma cena é destruída por falta de luz no laboratório, ele deve verificar a agenda dos atores e disponibilizar centenas de figurantes. O produtor é um pé no saco, está ali para trazer as notícias inoportunas e avisar que o tempo de gravação diminuiu drasticamente. A atriz principal passa por uma fase delicada e, caso sofra um colapso nervoso, a obra vai para o espaço. Os constantes erros de fala podem irritar até os mais serenos, mas o diretor precisa respirar e apoiar seus intérpretes. Uma mulher invade o set todas as manhãs e o gato não consegue beber o leite. Como contornar o fato de uma das atrizes estar grávida sem que seja necessário buscar outra? A trama não pode ficar confusa para o espectador.

Ferrand não é talentoso como Truffaut, todavia, é inegavelmente apaixonado pelo que faz. Ele gosta de olhar as diferentes fotos da protagonista a fim de decidir qual será o seu visual e o que será destacado em seu rosto, escolhe a pistola de acordo com o tamanho da mão do ator e está, a todo instante, se adaptando a novas possibilidades. Em longos planos, com a câmera instável, acompanhamos Ferrand caminhando e conversando com a figurinista, o diretor de arte, o contrarregra…

Da mesma forma, num único plano, passamos por escolhas técnicas, o controle do ego e uma discussão pré-matrimonial – o movimento é constante, as pessoas estão por todos os cantos e os dilemas são os mais diversos possíveis. A abordagem íntima de Truffaut nos coloca numa deliciosa posição intrusiva e mantém o ritmo acelerado. Ele não é só o cineasta, é também o cinéfilo que fica animado ao receber uma encomenda de livros sobre Rossellini, Hawks, Bergman, Hitchcock, Godard, Bresson, Lubitsch e Dreyer. Durante o intervalo, ele lê o jornal: “está passando “O Poderoso Chefão” na cidade inteira. Está arrasando”.

Estamos acostumados com a cena, não com a equipe encolhida no canto, evitando barulhos. Os operadores de câmera são acrobatas que se sustentam em gruas e passam por ambientes estreitos, tendo ainda que se preocupar com o enquadramento e a fluidez dos atores. O set é uma sandice organizada; todos conhecem suas funções de cor e impressionam pela inventividade e pelo contrato de fidelidade com a arte, que se sobrepõe ao salário. O processo de montagem é fascinante, a película é a alma do cinema e o maior ato de empatia de Truffaut com o espectador é colocá-lo em sua perspectiva, no olho da câmera. É como se ele dissesse: vejam, é isso o que faço, é isso o que amo. As passagens ao som da bela trilha sonora são declarações de amor.

Os atores, em maior ou menor grau, costumam ser figuras complexas. Não é apenas sobre dirigi-los em cena, medindo seus passos e gestos mais suaves, mas sobre entender suas individualidades e respeitá-las. Severine é a atriz neurótica que enxerga no envelhecimento a falência de suas habilidades. “Com bigode ou não, ele ainda interpreta amantes. Quanto a mim, sou só a esposa largada, desesperada. Que decadência”.

Alexandre é um veterano e vai ao aeroporto mais do que o normal. O que esconde? Tardiamente, ele admite sua homossexualidade e vive uma nova fase enquanto lida com a persona que carregou até aqui. A opção por Freeze Frames para enfatizar tal revelação é interessante.

Julie Baker é a estrela hollywoodiana; os flashes das câmeras ressaltam seu impacto na produção e os close ups, sua beleza escultural. Ela é a mais abordada pelos jornalistas, retratados por Truffaut como profissionais da pior qualidade, limitados a perguntas bobas e protocolares. A imagem da grande estrela é subvertida na medida em que Julie demonstra ser simpática e carinhosa. O diretor está lá para consolá-la e, até nos momentos mais delicados, está atento a possíveis novos diálogos – o timing cômico é impecável.

Interpretado por Jean-Pierre Léaud, Alphonse só pensa em duas coisas: filmes e mulheres. Nos tempos vagos, ele ignora a possibilidade de ir a um bom restaurante – o cinema é a prioridade. “As mulheres são mágicas?” é uma pergunta recorrente sua e as respostas variam entre o absurdo e a honestidade. Alphonse é o jovem talentoso que confunde romantismo com egoísmo. Ele é exagerado, fala sobre casamento e quando é abandonado pede dinheiro para ir a um bordel. Seus “shows particulares” rendem novos caos a um ambiente naturalmente frenético.

No terceiro ato, Truffaut usa a tragédia e a comédia a fim de potencializar o que já era atordoante. Ele também não perde a chance de reafirmar a racionalidade de uma equipe que busca alcançar o coração do espectador – a neve torna o assassinato mais cruel e brutal, claro.

E as brigas? Elas existem, porém, partem de um núcleo quase familiar, que diante de tantos problemas e prazos, não se esquece da essência da sétima arte: a sensibilidade.

“E gente, como eu e você, só são felizes no trabalho”. Esse fragmento é, sem dúvida, em algum nível, pessoal para Truffaut. Não sei, talvez esteja exagerando, mas acredito que ele sempre será o cineasta mais “cinéfilo da história”.

No auge da metalinguagem, o espetáculo termina. “Esperamos que o público goste de assistir como gostamos de fazê-lo”.

“Day For Night” é a obra prima definitiva acerca do fazer cinematográfico.

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