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O “Coming of Age” foi um subgênero popularizado nos Estados Unidos que, como o nome diz, tem em seu centro jovens amadurecendo, passando por uma fase transitória.

O primeiro amor, a curiosidade sexual, o mundo das drogas, as interações genuínas entre amigos, a difícil relação com a família, as inseguranças inerentes a uma fase complexa e a supervalorização de coisas que, com o tempo, se tornam risíveis são alguns dos elementos comuns a esse tipo de filme, presentes também neste aqui. Os bons “Coming of Age” são aqueles que compreendem sua protagonista a ponto de conferir traços particulares e que dão uma atenção especial ao ambiente que a circunda.

Estela sempre sonhou em ir para a Califórnia, onde Carlos, seu amado tio e principal confidente, vive. Não estamos falando apenas de um estado, mas de uma metáfora para a liberdade inexistente em São Paulo. A direção de arte é fundamental na caracterização da protagonista, preenchendo seu quarto com fotos suas e de seu tio, pôsteres de David Bowie, dos Beatles, de filmes icônicos, fitas cassete, toca-discos, livros e mapas. Na mente de Estela, atiçada pelos relatos de Carlos, aquela é a Califórnia, um mundo em perfeita sincronia, divertido e bonito.

O filme se passa na década de oitenta, um período em que, mais do que qualquer outro, o interesse por música de qualidade era um indicativo de caráter e inteligência. A música não era feita apenas para dançar, conversava diretamente com as dúvidas e angústias dos jovens, atacava a alma de seres errantes, ainda em busca de suas versões mais honestas.

Claro, as festas regadas a bandas como Metrô, Blitz, Titãs e Os Paralamas Do Sucesso não deixam de ser representações muito autênticas dessa geração, todavia, são as idas às lojas de disco que distinguem Estela dos demais. Suas amigas não estão interessadas no que Morrissey, David Byrne e Bernard Sumner têm a dizer, só querem dançar, fofocar sobre garotos e se gabar por terem transado primeiro. Nossa percepção em relação a Joana e Alessandra se altera na medida em que a protagonista amadurece, sendo capaz de enxergá-las como garotas fúteis e bobas.

O garoto certo, a princípio, é o mais popular. As coisas mudam e a direção aponta para JM, o garoto que emula Robert Smith e fica no fundo da sala. A música é responsável por aproximá-los. A música abre os olhos de Estela para além das aparências e dos estereótipos cultivados nos corredores da escola. O roteiro é perfeito em sua gradação, na lenta desconstrução de idealizações. Nos primeiros momentos, a protagonista evita JM; depois, é indelicada; até finalmente ajustar as arestas e perceber quem realmente importa em seu ciclo social. Eles nem precisam conversar muito, a conexão advém de dicas de livros e músicas.

Todos ali estão perdidos, confusos e apavorados, mas podem ter certeza de que os que deixam esses sentimentos mais nítidos são os que estão mais próximos de uma resposta. Aqueles que escutam The Cure, The Smiths, Echo and The Bunnymen, New Order e David Bowie são os que realmente demonstram insatisfação e curiosidade.

Repentinamente, Carlos aparece em São Paulo, adiando os planos de Estela de conhecer a Califórnia. Ele é uma figura adorável e empática que reconhece seus defeitos enquanto adulto incapaz de pagar as próprias contas. Carlos é um jornalista musical e a sua alegria ao falar com a sobrinha é contagiante. “Melhor que show do Bowie” – uma descrição certeira para o amor recíproco.

“São uns irmãos, uns caras novos”, diz ele, ao dar um pôster de “Blood Simple”, dos irmãos Coen, para Estela. Esse tipo de sutileza é cativante, enche o espectador de nostalgia, mesmo que não tenha vivido na década de oitenta.

Desde sua primeira aparição, notamos a fisionomia enfraquecida de Carlos, que se agrava ao longo da trama. Atento ao que acontecia naquela época, o roteiro confecciona um retrato dilacerante de um homem com AIDS, doença cercada por preconceito e desconhecimento. O trabalho corporal de Caio Blat é fantástico, cada fase é minuciosamente detalhada. O leve tremor nas mãos é um exemplo do cuidado na sua composição. Em determinado momento, Carlos ameaça contar a verdade para Estela, porém recua. A cineasta Marina Person fecha o quadro, criando uma expectativa e destacando a intimidade entre os dois. O mesmo recurso é utilizado na primeira vez em que a protagonista e JM saem juntos – pessoas importantes em sua vida.

Carlos e o rapaz não interagem, entretanto, o simples motivo dele ter apresentado “Temptation”, do New Order, para sua sobrinha é suficiente para que o respeito seja mútuo.

O quarto de JM também diz muito sobre sua personalidade. É uma verdadeira zona, um caos repleto de homenagens aos músicos que admira.

O vermelho, presente em roupas, na iluminação e em alguns objetos, está associado à intensidade dos sentimentos joviais, desproporcionais e incontroláveis. Os tons frios e o azul, pontuados pela fotografia e pela direção de arte, conferem uma melancolia apropriada à obra e aos seus personagens.

No fim, podemos afirmar que JM e Estela estão mais esperançosos e convictos de si. Eles não estão mais sozinhos, já passaram pela fase da estranheza e agora entendem o significado das letras que escutam.

Aren Gallo e Caio Horowicz dão conta do arco de seus personagens e apresentam uma química fascinante.

“Califórnia” é um deleite para os fãs da sonoridade oitentista. Um filme singelo e belo sobre as nuances que fazem toda a diferença no processo de amadurecimento.

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