Janet Frame era uma criança curiosa, capaz de roubar moedas do pai para comprar chicletes para todos os seus colegas de sala e dizer um palavrão na mesa de jantar sem compreender exatamente o que a palavra em questão significava. Nascida na Nova Zelândia, a protagonista vem de uma família humilde, com problemas financeiros, mas, majoritariamente afetuosa. A cena que melhor representa essa união é aquela em que as quatro irmãs dividem a mesma cama. Janet as admira, principalmente Myrtle, a mais velha. Gordinha, despenteada e assumidamente não entusiasta de banhos, ela segue sua infância amadurecendo, no entanto, mantendo uma ingenuidade típica dessa fase. Seus enormes cabelos cacheados e o suéter puído são marcas de um período alegre e despretensioso, que deve ser aproveitado ao máximo.
A adolescência chega e lhe oferece sua primeira tragédia: a morte de Myrtle, afogada. Enquanto se descobre como mulher, seu futuro e principais interesses, Janet precisa assumir um posto maior dentro da família. Na escola, ela vê as garotas conversando sobre Clark Gable e Fred Astaire e se distancia, demonstrando fascínio por questões filosóficas e literatura, que vira a sua grande paixão. Quanto mais cresce, mais distante fica de suas colegas. Escrever é um exercício cerebral, solitário, que acaba inibindo suas habilidades sociais. Em determinada cena, a vemos sentada, receosa, no meio de uma festa, enquanto as demais cantam. “Eu gosto de Schubert”.
A caminho da faculdade, distante de sua pequena cidade, Janet assume de vez a sua introspecção, se tornando uma jovem reclusa, assustada e aficionada por livros que mente para a família, dizendo que deseja ser uma professora. O que acontece, acarretando pensamentos estranhos e fortes crises de ansiedade. Somos discretamente informados que a protagonista tentou cometer suicídio e, por mais desesperadora que sua situação seja, seus primeiros contos são super elogiados, sendo, inclusive, publicados. Seu colega compreende sua aflição e acredita que interná-la num hospital psiquiátrico é a melhor forma de prevenir algo pior. Janet é diagnosticada com esquizofrenia e passa oito anos num manicômio, acumulando, nesse período, duzentas sessões de choque, aceitando tudo de bom grado. Seu único prazer está na escrita e é triste constatar que, não importa onde ela esteja, se uma máquina de escrever estiver à disposição, está tudo bem. Passando por humilhações e um tratamento desumano, Janet é informada que seu primeiro livro foi publicado. Liberada pelos médicos, que pensavam seriamente na possibilidade de uma lobotomia, a protagonista volta para casa, onde é recebida pela família, abatida e unida. Ela não se sente uma adulta normal, não se casou, nem teve filhos. Isabel, sua outra irmã, também morre afogada, sobrando apenas Bruddie e June, que lhe apresenta Frank, que se encanta por seu trabalho e passa a ser o seu mentor. Com o sucesso de seu novo livro, Janet conquista uma bolsa literária e viaja para a Europa.
Atormentada pelo passado e por sua incapacidade de se relacionar, ela impressiona pela força, por seguir seu sonho e não permitir que sua mente a destrua. A protagonista só se sente realmente bem em volta de artistas, pessoas que tenham algo a dizer. E é justamente por um poeta americano que ela se apaixona. O sexo pouco importa, Janet havia encontrado algo tão importante quanto a literatura e não se enxergava mais como uma aberração. “Me sinto tão sensual quanto um tronco”. Decepções e surpresas infelizes permeiam a sua trajetória e ela descobre que havia sido mal diagnosticada, era apenas tímida e deprimida. Incentivada a escrever sobre o seu período no manicômio, a protagonista alcança mais um sucesso e se estabelece como uma escritora talentosíssima. Sem seus pais, também mortos, ela retorna a Nova Zelândia, onde encontra, finalmente, a paz necessária para escrever sem qualquer tipo de aflição.
Baseado na história de Janet Frame, “An Angel At My Table” é um filme espetacular. Jane Campion, como a maioria dos diretores que realizam biografias, poderia simplesmente “passar” pela vida de Janet, mas não, seu interesse na escritora é genuíno, poucos retratos são tão detalhados, sutis e ricos. Com mais de duas horas e meia de duração, a obra explora momentos simples e casuais, fundamentais no crescimento da protagonista e expostos com um carinho impressionante. Campion não tem pressa, pelo contrário, quer que o espectador compreenda, se afeiçoe e se identifique com Janet. Cada fase é retratada com precisão, fornecendo um estudo aprofundado, diria que inimaginável de se encontrar no cinema atual. A diretora nunca esquece da protagonista, seu rosto é algo a ser estudado e apreciado. Close ups e movimentos delicados enfatizam a sua total desconexão perante o meio que a circunda, sua agonizante depressão, seu fascínio pela escrita e os seus raros e belos momentos de alegria.
Campion é responsável por quadros estonteantes, utilizando as encantadoras paisagens neozelandesas em diferentes situações. Na infância, o campo é acompanhado por um céu lúdico, fantasioso e, no decorrer da trama, a paleta de cores fica mais fria – acinzentada, esverdeada ou azulada. Isso não é uma regra, Campion e a diretora de fotografia sabem exatamente as cores e os ambientes que cada fase de Janet pede. Quando viaja para Paris e quando se apaixona na Espanha, somos transportados para espaços abertos, que refletem o estado de espírito da protagonista, em contrapartida, na maior parte do filme, Janet fica em lugares fechados, melancólicos, marcados pelas tonalidades já mencionadas. Nesse sentido, vale ressaltar o excelente trabalho da direção de arte, que entende exatamente a situação de sua família, transformando a casa em um local apertado e decadente, porém acolhedor – a mesa de jantar é o melhor exemplo.
O manicômio é apresentado da forma mais dura e real possível, enfatizado pelo verde adoecido – insanidade – e pelos tons frios que tomam conta das salas e pela câmera de Campion, que não torna a vida do espectador fácil, invadindo as entranhas do “inferno”. Outro acerto da diretora é não mostrar as mortes dos familiares de Janet, permitindo que o público seja pego de surpresa, assim como a protagonista.
A montagem é responsável pelo ritmo do filme, que não poderia ser mais agradável.
A trilha sonora toma um caminho intrigante, mudando o estilo de acordo com os países que Janet visita. O tema principal, obviamente, remete a algo neozelandês, entretanto, melodias parisienses e espanholas também são escutadas.
O figurino da protagonista diz muito sobre sua personalidade. A não ser quando está hospitalizada, suas roupas são quase sempre verdes e vermelhas, denotando um amor profundo pelo o que faz, coragem de prosseguir em meio a tantos traumas e dificuldades e um otimismo reconfortante. Se não fosse uma história verídica, dificilmente acreditaria no que estava vendo e isso faz de Janet Frame uma mulher incrível e inspiradora.
Três atrizes interpretam a protagonista, contudo, quem chama mais atenção é Kerry Fox, que oferece uma performance perfeita. Seus olhares assustados e melancólicos, a entonação tímida e a felicidade genuína ao escrever e se deparar com um grupo de artistas são trejeitos dignos de aplauso, assim como o seu trabalho corporal – encolhida, salientando seu medo constante. Sua rápida dança no desfecho é um detalhe importante para o seu arco, afinal, tudo aqui é relevante.
“An Angel At My Table” é uma obra prima honesta, doce e triste.
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