A mente de Charlie Kaufman sempre nos oferece exercícios de auto-observação. Seus filmes são, em geral, melancólicos, existencialistas e profundos, na medida em que ele compreende genuinamente as maiores angústias e dores que permeiam a trajetória humana.
“Synedoche, New York” não é uma obra fácil de se digerir, nem de aceitar, afinal, ela é bastante pessimista. No entanto, é inegável a criatividade e a originalidade de Kaufman, que coloca o espectador para refletir a partir de uma trama nada convencional.
Caden Cotard é um diretor de peças de teatro. Um homem cujo casamento estacionou em um estado de pura frieza e que sofre com terríveis crises de ansiedade. Adele o chama pelo nome, não por um apelido carinhoso e apenas o informa que levará sua filha, Olive, para a Alemanha, sem previsão de retorno. Tudo ao redor de Caden remete ao seu fim: o leite estragado, o obituário no jornal e desenhos animados no qual ele morre – fruto de sua imaginação. O protagonista fica minutos observando suas fezes, verificando se há algum vestígio de sangue nelas.
Quantos médicos Caden visita durante o filme? A única certeza é que suas inseguranças e crises o tornam suscetível e seu medo constante o leva a lugares física e mentalmente importantes, mas que deveriam ser evitados. Adele não é uma grande companheira e sabe disso, não à toa, admite que já imaginou a morte de seu marido e falta a estreia de sua nova peça. Ela quer recomeçar sua vida, fugir daquele ambiente claustrofóbico que limita as suas ambições artísticas e decide abandoná-lo, num ato que denota, simultaneamente, medo de não ser “relevante o suficiente” e um tremendo egoísmo.
A solidão transforma Caden em um homem ainda mais angustiado, que luta contra espasmos, toques e outras reações físicas.
Na sua última peça, os jovens interpretam idosos, ressaltando o seu pavor pelo ciclo natural das coisas. Sua insegurança acaba sendo projetada em seus relacionamentos e a impressão que temos é de que todas elas se sentem melhores quando estão com outros parceiros.
Hazel surge como uma figura radiante, cujos cabelos dourados são destacados por uma forte luz. Ela vive em uma casa literalmente em chamas, o que pode ser interpretado como uma forma de chamar a atenção dos demais, que a enxergavam apenas como a “bilheteira” ou, assim como o desenho animado, uma projeção das dores de Caden. Hazel é quem fica mais ao seu lado, porém não é com o protagonista que ela se sente mais leve e feliz.
Claire admira o trabalho de Caden. Eles se casam e têm uma filha, que é praticamente renegada pelo pai, a ponto dele se referir à Olive como a “filha de verdade”.
Essas mulheres não se relacionaram com o protagonista por acaso. Caden é um homem sensível e inteligente que, infelizmente, se vê cercado por amarras que seu cérebro não consegue desmontar. Adele é cruel ao esconder Olive e nunca mais dar notícias. Caden sabe pelos jornais que ela se tornou uma artista renomada e se espanta ao perceber a idade e as tatuagens no corpo de sua filha. O protagonista se martiriza por não ter sido uma inspiração ou estado mais presente. Adele nunca está em casa, não é uma pessoa, é um ícone, logo, não importa se seu chuveiro está sempre ligado.
Caden recebe um prêmio que lhe dá direito a um fundo de investimentos.
O protagonista quer fazer algo honesto e pessoal, mas o que exatamente?
É óbvio: uma peça sobre sua vida, suas angústias, crises e pessoas que passaram por ela. Não é algo exatamente original, no entanto, Kaufman começa a apresentar suas principais características nesse segmento. A obra simplesmente não tem fim, pois segue, radicalmente, o cotidiano de Caden. Se uma pessoa sai de sua vida, ela automaticamente sai da peça e se o marido de Hazel a abandona, não é afeto que ele demonstra, mas urgência por ter que demitir quem o interpretava. Sammy, o “protagonista”, o segue diariamente e sabe de cor todos os seus trejeitos. Essa dinâmica segue, embaralha a mente do espectador e chega a tal ponto em que os atores se perguntam quando haverá alguma apresentação, afinal, já estão há dezessete anos ensaiando. Uma das grandes indagações de Kaufman é exatamente essa. O que é o tempo? Não temos indicações claras de que ele está passando e isso prova apenas que o hífen que separa a data de seu nascimento e da sua morte representa uma fração de segundos, na qual fingimos, por boa parte, ser algo que não somos. Escondemos nossas dores e fingimos que está tudo bem.
O tempo é algo invisível, que cobre o início e o fim, mas que não se pode medir nem controlar.
“Acreditamos secretamente que vamos viver eternamente.”
“Lutamos para sobreviver e escorregamos em silêncio”.
Ninguém liga para o sofrimento alheio, pois estamos ocupados demais com o nosso próprio.
Presos a personagens eternos, alguns dos atores, principalmente Sammy, questionam o egoísmo e o narcisismo de Caden, que lidava com centenas de pessoas e falava apenas sobre si, sem nunca demonstrar interesse pelos outros. O protagonista é um homem morto e sua peça é apenas uma forma de lidar com a sua incapacidade de viver, de se relacionar e relaxar. A princípio, pode ser visto com uma forma de compreender os demônios internos, entretanto, quanto mais interagimos com aquele personagem, mais nítida fica a sua impotência e depressão. Caden se transforma em um Deus, sem dúvida alguma, o mais trágico que já passou pela Terra.
Nenhuma pessoa ali era um figurante, todos são protagonistas em suas vidas e o fato de Caden dar o seu lugar a uma mulher e interpretar o papel que era o dela prova, ao mesmo tempo, o quão parecidos e diferentes somos. Dores não podem ser medidas e, no fundo, passamos pela mesma experiência.
O texto de Charlie Kaufman é o principal destaque, esbanjando humanidade e surpreendendo, mais uma vez, por um estudo de personagem tão complexo e interessante. Sua compreensão acerca do consciente humano é espantosa e a sua facilidade em criar diálogos orgânicos é rara.
Não diria que sua direção é tímida, porém foge de exibicionismos. Seu plongée no desfecho, mostrando o elenco inteiro morto é fascinante e basicamente define sua obra. Seus planos-detalhe enfatizam o toque e a ansiedade de Caden e sua pista, ao posicionar Sammy, logo no início, atrás do protagonista salienta a condição de coadjuvante do ator, praticamente uma sombra. Os relógios estão por toda a parte e seus ponteiros não param.
A montagem é espetacular por dois motivos. Evocar uma atmosfera caótica e enervante através de cortes frenéticos, que conversam com as crises de Caden, que advém de pensamentos negativos e de respostas inconclusivas de todos os médicos que ele consulta. Ligar uma cena a outra sem indicar nenhuma passagem temporal, montando o cenário para cenas impactantes e um grande desfecho. Sem falar nos flashbacks brilhantemente inseridos que machucam Caden.
A trilha sonora é belíssima, conversando diretamente com a trama.
A direção de arte e a fotografia combinam e fazem da vida do protagonista a mais angustiante possível. Tons frios e azulados; paredes cinzas, sujas e amareladas tomam conta da tela. O próprio galpão onde eles ensaiam, a princípio, parece um cemitério ou algo do tipo.
Philip Seymour Hoffman oferece uma performance riquíssima, repleta de nuances e trejeitos que fortalecem a difícil personalidade de Caden. O ator também nos emociona, por exemplo, na cena em que vê Olive se prostituindo e grita “Sou eu, seu pai”, chorando copiosamente. Seu trabalho corporal e vocal é impressionante, contrastando com a sua incrível falta de vivência.
“Synedoche, New York” é uma obra difícil de descrever em poucas palavras, o que ratifica o selo Charlie Kaufman de qualidade.
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